Nkisi ou Orixá? O que nos ensinaram "errado" sobre as divindades africanas
Durante séculos, o conhecimento sobre as religiões de matriz africana foi deturpado, marginalizado e muitas vezes apagado pela lógica colonial e eurocêntrica. No Brasil, esse apagamento foi tão profundo que, mesmo entre os praticantes das religiões afro-brasileiras, ainda hoje existem confusões sobre as divindades cultuadas: afinal, estamos falando de Nkisi ou Orixá? Ou ambos? Qual a diferença entre eles? E por que tantas pessoas ainda acreditam que são a mesma coisa?
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre o modo como fomos ensinados a entender as divindades africanas, resgatando o lugar de fala das nações Congo-Angola e Yorùbá, suas cosmovisões e espiritualidades distintas.
1. África não é um país: o erro da generalização
Um dos maiores equívocos cometidos ao falar das religiões de matriz africana é tratá-las como uma só. A ideia de “religião africana” é um rótulo simplista, que ignora a imensa diversidade cultural, linguística e espiritual existente em todo o continente africano.
A África é composta por 54 países, com centenas de etnias, línguas e formas de religiosidade. Nesse sentido, Nkisi e Orixá são expressões sagradas de povos distintos, com raízes em civilizações e tradições próprias.
2. Quem são os Minkisi?
Os Minkisi (plural de Nkisi, em kimbundu) são entidades espirituais cultuadas pelos povos Bantu, especialmente das regiões do atual Congo e Angola. No Brasil, são a base espiritual das chamadas nações Angola e Congo dentro do Candomblé.
Os Minkisi representam forças da natureza, elementos da vida, da morte e da ancestralidade. São divindades que se manifestam em árvores, rios, pedras, relâmpagos, e têm ligações profundas com os espíritos dos antepassados. Cada Nkisi possui suas próprias características, energias, cores, comidas, ritmos e formas de saudação.
Importante: o culto aos Minkisi não é animismo no sentido pejorativo da palavra. É uma espiritualidade complexa, com doutrinas, cosmologia e rituais sofisticados que foram mantidos oralmente e em segredo por séculos.
3. Quem são os Orixás?
Os Orixás são divindades oriundas da cultura Yorùbá, predominantemente da região da atual Nigéria, Benin e Togo. Assim como os Minkisi, os Orixás também representam forças da natureza e aspectos da vida humana — como o amor, a guerra, a fertilidade, a justiça, a sabedoria.
Cada Orixá possui um arquétipo bem definido, com símbolos, histórias (os itans), cantigas, rituais próprios e uma forma específica de se manifestar na vida do iniciado. O culto aos Orixás também valoriza a ancestralidade, o respeito aos mais velhos e a ligação com os elementos naturais.
No Brasil, a influência Yorùbá é predominante no Candomblé Ketu, que foi o mais sistematizado e difundido principalmente na Bahia, devido à quantidade significativa de africanos dessa etnia trazidos como escravizados.
4. O erro da equivalência forçada
Durante muito tempo, por necessidade de sobrevivência e adaptação dentro de um contexto opressor, muitos sacerdotes, estudiosos e praticantes passaram a fazer correspondências entre Minkisi e Orixás, como se fossem versões diferentes da mesma divindade. Exemplos comuns:
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Nkosi = Ogum
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Nzazi = Xangô
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Ndandalunda = Oxum
Essa prática, conhecida como “sincretismo intraafricano”, embora tenha sido útil para a preservação de cultos e identidade religiosa em tempos de perseguição, contribuiu para o apagamento das especificidades das tradições Bantu.
É importante compreender que Minkisi e Orixás não são os mesmos, ainda que possam apresentar similaridades simbólicas ou funções parecidas. São cosmovisões diferentes, com mitologias distintas e formas próprias de lidar com o sagrado.
5. O racismo religioso e a desvalorização do Bantu
Um dos fatores que influenciou essa confusão é o racismo religioso. A nação Ketu (Yorùbá) foi, por muito tempo, considerada mais "organizada" ou "superior", especialmente por estudiosos brancos e pelas elites negras letradas do século XIX e XX. Como resultado, o Candomblé Angola e outras nações Bantu foram marginalizados, considerados “menos africanos” ou “menos puros”.
Essa visão, profundamente colonial e preconceituosa, desconsidera o valor da tradição Bantu, que possui uma riqueza cultural imensa, uma teologia profunda e um legado que atravessou o Atlântico e resistiu à escravidão.
Resgatar o culto aos Minkisi em sua essência é um ato de resistência, de memória ancestral e de justiça histórica.
6. Aprender com ambas as tradições
Valorizar a diversidade entre Nkisi e Orixá não significa criar divisões ou disputas. Ao contrário, é reconhecer a multiplicidade de formas de viver o sagrado dentro do que chamamos de religiões afro-brasileiras.
Muitas casas de Candomblé no Brasil mesclam elementos das duas tradições. Isso não é um problema em si, desde que haja consciência, respeito e estudo. O problema é quando se ignora a origem dos elementos ou se apaga a identidade de um culto para privilegiar outro.
Conclusão: o que podemos (re)aprender?
Precisamos repensar a forma como aprendemos sobre as divindades africanas. Romper com o pensamento colonial é também romper com as ideias de que tudo o que é Bantu precisa ser “Yorubanizado” para ter valor. Nkisi e Orixá são diferentes — e isso é belo. Essa diferença enriquece nosso entendimento do sagrado e fortalece as raízes ancestrais que sustentam o axé das comunidades de terreiro.
Que tal começarmos a perguntar:
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Por que ainda nos é ensinado que só os Orixás são divindades verdadeiras?
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O que a tradição Bantu pode nos ensinar sobre o mundo, a natureza e o espírito?
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Como podemos fortalecer o culto aos Minkisi com estudo, prática e respeito?
Reaprender é também um ato de cura.
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